Rial, Carmen e Grossi, Miriam. Os estupradores que viraram heróis. Em Mulherio (Fundação Carlos Chagas) n. 32, outubro de 1987 p.3-4.

15/10/2020 11:04

Henrique, Fernando, Eduardo e Alexi, quatro jogadores do Grêmio acusados do estupro de uma menina de 13 anos na Suíça, foram transformados pela imprensa gaúcha em “heróis”, graças a uma serie de deturpações dos fatos e do culto ao machismo.

Uma pequena multidão de quinhentos torcedores, repórteres tornava o saguão odo aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, ás 18h do dia 29 de agosto, quando taxiava na pista o avião da Varig que trazia de Zurique os quatro jogadores acusados de estupro de uma menina de 13 anos, as bandeiras e camisetas do Grêmio e do internacional curiosamente unidas e as crianças erguidas nos ombros de seus pais davam-se um clima de festa ao desembarque dos 4 jogadores: Henrique Etges, Fernando Castoldi, Eduardo Hamester e Alexi Stival, o Cuca. Atônitos e surpresos pela recepção, eles desculpavam-se e se diziam arrependidos pelo que tinham feito, visivelmente demonstrando não estarem compreendendo o que se passava. Só depois é que se deram conta que os gritos de “puta, puta” eram dirigidos à menina Sandra Pfäffli e que a opinião pública gaúcha não estava ali para condená-los ou esperando desculpas: eles eram os heróis, tinham conseguido, imagine, provar à Suíça e ao mundo que ainda existem machos, pelo menos no Rio Grande do Sul.
O tom nas entrevistas foi mudando, as perguntas habilmente dirigidas pelos repórteres ofereciam espaço para declarações sobre a solidão, as dificuldades de comunicação com o carcereiro e os outros detentos e contra a terrível comida servida nas prisões de Berna – onde faltava a totêmica carne dos gaúchos. Enfim, pequenos detalhes que ajudavam a confirmar para o publico o que os comentaristas esportivos já vinham dizendo a quase um mês. Do estupro, nenhuma palavra. Como heróis, os quatro firmaram um pacto de silencio para evitar prejudicar um ou outro dos companheiros.
Alguns dias antes tinham desembarcado neste mesmo aeroporto Valdo e Tafarral, os dois jogadores gaúchos titulares da seleção brasileira campeã nos jogos Pan-Americanos. Nenhum torcedor os esperava. As medalhas de ouro que traziam nas mãos não comoveram, pois eram simplesmente uma vitória no campo esportivo, já a dos quatro acusados de estupro sim, tinha valor: era uma vitória da honra gaúcha, da hombridade, é claro, também da crônica esportiva que conseguiu em um mês transformar os quatro acusados de crime em vitimas de um “juiz nazista” e o estupro de uma menina de 13 anos por três dos jogadores em uma “travessura” inconsequente.

Estupro, o souvenir.
A “aventura” de Fernando, Henrique, Cuca e Eduardo começou as 15h do dia 30 de julho, quando a menina Sandra, acompanhada de seu namorado e seu amigo, bateu no quarto 204 do Hotel Metrópole, em Berna, – onde se hospedava a delegação gremista – em busca de um souvenir do clube. O que aconteceu no quarto a própria Sandra contou logo depois à policia Suíça e ao jornal Blick de Zurique: “…primeiro os quatro jogadores brasileiros expulsaram do apartamento os dois amigos que me acompanhavam e então os quatro avançaram sobre mim. Três me seguraram, enquanto o outro me violentava. Então veio um segundo brasileiro e me violentou também. Eu tenho medo de ficar gravida, eu não tomo anticoncepcionais”.
Tão logo a queixa foi registrada na delegacia de policia de Berna, os policiais foram até o hotel e prenderam Henrique e Eduardo e mais tarde Cuca e Fernando, os outros dois jogadores. Todos foram mantidos em celas individuais e em presídios diferentes a partir deste momento. Os dirigentes do clube tentaram abafar o que, a primeira vista, parecia um fato altamente negativo. Só dois dias depois, quando o grêmio teve de disputar uma partida sem contar com os quatro reservas, é que a notícia chegou ao Brasil. A excursão prosseguiu ate o final e, na volta, a delegação teve uma recepção de rotina com apenas três torcedores saudando os jogadores titulares. E, como a situação dos presos não melhorava, o Grêmio enviou ao cantão de Berna um advogado do clube, Luis Carlos Silveira Martins, que se juntou aos dois advogados Suíços que tratavam do caso.
A esta altura, o escândalo já ganhava espaço na imprensa. Sem nenhum jornalista gaúcho no local até o dia 15, a solução dos jornais, rádios e Tvs para manter o intenso debate em torno do caso foi a especulação, a imaginação e a mentira. E logo surgiram atenuantes. O namorado da garota seria um rapaz “ciumento” que a teria obrigado a prestar queixa na delegacia, de comum acordo com o pai de Sandra, que por estar se separando da mulher teria interesse em provas que a educação da menina estava sendo negligenciada. Falava-se ainda em “um complô internacional para prejudicar a imagem do clube gaúcho no exterior”.
Depois se especulou que só dois jogadores teriam violentado a menina, enquanto os outros dois davam cobertura no corredor. E também que Sandra, “menina de vida tão liberal”, já teria transado com jogadores do Grêmio na excursão do ano passado, em Berna. No entanto a versão do próprio advogado do grêmio não abre espaço para qualquer atenuante:”…um dos jogadores manteve relação sexual completa, outro apenas sexo oral, enquanto um terceiro fez caricias e o quarto foi um ‘voyeur’ conivente: apenas olhou” declarou Silveira Martins na Zero Hora no dia 31 de agosto.
“Nossos doces devassos”
Se o jornal nacional da rede Globo tratava do fato com alguma objetividade, a imprensa do Rio Grande do Sul, liderada pelo cronista/torcedor Paulo Santana, começava a sua campanha a favor dos acusados, numa total distorção dos fatos, primeiro tratou-se de alterar a idade de Sandra: como 13 anos soa muito violento, ela passou a ter “14 incompletos” e depois “14 anos”. Como ainda assim teria sido difícil de se aceitar um estupro de uma menina por 4 jogadores, os cronistas trataram de ir esclarecendo aos leitores de Zero Hora e Correio do Povo, telespectadores e ouvintes da radio e TV Gaúcha que “meninas de 14 na Suíça já transam com os namorados e tomam pílulas” e “são verdadeiras mulheres capazes de seduzirem qualquer um”.
Lauro Quadros, outro cronista de Zero Hora, principal jornal do estado, dava explicações pedagógicas no Jornal do Almoço da RBS: “eu sou pai, você que é mãe ou pai vai me entender, não é a mesma coisa um filho ou uma filha. Todo pai quer que o seu filho fature todas as meninas do bairro, quer que ele seja o garanhão da turma. Já com a filha é diferente. Não se deve culpar os rapazes do grêmio por terem feito o que todo pai gostaria de ver o seu filho fazer”. De estupradores, os jogadores foram se transformando em “homens normais” que reagiram como qualquer um teria reagido diante de um “mulherão, uma mocetona”. “é um rosto de menina num corpo de mulher”, explica outro cronista para justificar o espanto dos jogadores ao descobrirem a idade da vitima, já na prisão. “meu filho não é um homossexual”, argumentava a mãe de Eduardo, “ele não é culpado de nada, a garota é que foi lá tirar a roupa na frente deles, que não são homossexuais e agiram como homens”. Declaração aproveitada pelos “formadores de opinião publica”, que chegaram a gozar os jogadores do time adversário dizendo que, de agora em diante, seriam chamados de “bichas”.
Uma vez transformada em “ato de homem” a violência dos 4 sobre a menina, tratava-se agora de transformar os “travessos” rapazes em vitimas das leis suíças. E ai a crônica mostrou-se pródiga em asneiras. Chegaram ao ponto de comparar o processo de instrução suíço á inquisição, de afirmar que o criminoso nazista Rudolf Hess recebia melhor tratamento em Spandau, e ate que o líder comunista Luis Carlos Prestes teria tido prisão melhor durante os nove anos em que ficou incomunicável no Estado Novo. Enquanto isto o próprio advogado do grêmio esbanjava elogios ás prisões suíças, descrevia como “lauto banquete” as refeições servidas a um dos detentos e o fotografo de Zero Hora enviava fotos dos pequenos e confortáveis castelos, que servem de prisão na Suíça. Não obstante, Paulo Santana sugeria a seus leitores que lessem o “clássico” Papillon para compreenderem o que estava acontecendo com os 4 e citava artigos da “carta dos direitos do homem” para provar que os suíços contradiziam o acordo internacional”.

Miriam Grossi é antropóloga e doutoranda na Universidade de Paris, onde prepara a tese discurso e representações de violência contra a mulher a partir do estudo de casos do SOS-mulher de Porto Alegre.
Carmen Rial é jornalista, antropóloga e professora na Universidade Federal de Santa Catarina, onde elabora a tese Espaço doméstico na Lagoa da Conceição.

Perolas da imprensa (machista) do RS.

“Os jogadores do Grêmio não assimilaram a mudança do fuso horário. Levaram um choque de costumes… Agora é só torcer – no que acredito – que a justiça suíça faça justiça. Isto é, que ela encare o fato como realmente foi uma travessura irresponsável e de total imprevidência dos seus autores quanto a sua ilicitude e consequências”.
– Paulo Santana, Zero Hora, 08/08/87.

Não faltou sequer um teste de escolha múltipla: “Pense e responda: a) Uma garota que esta sendo estuprada não grita? b) se grita ninguém ouve, mesmo estando num hotel? c)havendo violência, a vitima não reage a ponto de ferir-se?”
– Wianey Carlet, Correio do Povo, 08/87.

E o que dizer quando o estupro passa a ser um “deslize sexual” menos grave que o justo?
“alguns pecaram mais que outros, se é que houve pecado… O fato ocorrido no hotel de Berna é normal em quase todas as excursões, fora ou dentro do país… Se os jogadores tivessem furtado praticado desordem séria ou outra atitude demasiadamente desabonatória, eu aconselharia sua eliminação do clube. Mas um deslize de ordem sexual em que, visivelmente, colaborou para sua consumação uma conduta, no mínimo, quase conivente da chamada vitima, não deve servir de amparo a uma decisão drástica”.
-Paulo Santana, Zero Hora, 29/09/87

Violência? Claro que não. Ficou mais do que claro, pelo menos para mim, que não houve violência no ap.204 do hotel metrópole. Pode-se questionar, isto sim, o bom gosto dos envolvidos… Mas corres e sabores não se discute, resta dar as boas vindas aos nossos doces devassos”.
-Wianey Carlet, Correio do Povo, 29/08/87

Segundo a logica machista, culpados são os que não estupram mulheres, as “bichas”: “Na semana que vem chega o Internacional. Parece que estou vendo a cena no aeroporto Salgado Filho: Terezinha Morango (torcedora-símbolo) e a torcida Fico em coro para os jogadores colorados: “bicha” “bicha”, “bicha”.
-Paulo Santana, ZH, 20/08/87.
As fotos publicadas de Sandra foram mais um estimulo á imaginação: “…quem achar que a Sandrinha é bagulho que atire a primeira pedra’.
-Lauro Qudaros, ZH, 18/08/87

“…a moça Sandra, que seduziu ou foi seduzida pelos jogadores do Grêmio…E que moça bonita a Sandra. Uma mocetona. Nem parece que tem só 13 anos. Uma mulher com aquela beleza sempre causa complicação. Até mesmo para quem casa com ela”
-Lauro Quadros, ZH,31/08/87.

“…uma foto vale mais que mil palavras, basta comparar a que mostra a esfuziante Sandrinha, na festa dos Young Boys, com a que revela a cara abatida dos jogadores saindo da prisão, para confirmar que, lei a parte, sofrimento moral só os quatro jogadores tiveram”.
-Paulo Santana, ZH, 18/08/87.

Como se tornar Amélia ou as receitas dos cronistas gaúchos de Cuca: “Esta é a hora de Rejane. Se, consideradas as circunstancias, ela revelar sensibilidade e compreensão, é porque se trata de uma Grande Mulher. Já imaginaram o Cuca conseguir o que conseguiu, telefonar, e levar outra paulada na cabeça? Não, isto não vai acontecer.’
-lauro Quadros, ZH, 28/08/87.

“O juiz suíço é o mais cruel de todos que já vi. Equipara-se a um ditador sanguinário. Pois além de manter Cuca incomunicável, a única brecha que abre para o presidiário é justamente a da tortura de explicar para sua esposa o que houve naquele apartamento de hotel… teremos que mandar para lá o Jair Kriscke dos Direitos Humanos… O Cuca tinha uma única vantagem em estar incomunicável e atirado no catre da cela: não ter que explicar a mulher o acontecido com a garota”.
-Paulo Santana, ZH, 23/08/87.

Machos e prendas
Toda a campanha pró-jogadores culminou na chegada dos “doces devassos”, na expressão de Wianey Carlet, cronista do tradicional Correio do Povo, quando foram recebidos com flores por suas noivas e o que é pior, com um carinho “compreensivo” de muitas mulheres torcedoras que se encontravam no aeroporto. “É obvio que a menina foi lá se oferecer e depois se arrependeu. Na Europa é esta a pouca vergonha, dizem que é normal as meninas transarem com os namorados na casa dos pais”, comentava uma senhora com as amigas.
Os jogadores, visivelmente surpreendidos pela festa, ao invés da pena de vinte anos que poderiam pegar na Suíça, terão apenas que ressarcir o Grêmio dos 7 mil francos suíços (cerca de Cz$ 300 mil) gastos com a viagem do advogado e suas finanças. Pois o clube, diante “da montanha de cartas e telegramas de todo o estado pedindo a não expulsão dos jogadores”, acabou “perdoando” os quatro reservas. O caso terá prosseguimento na justiça Suíça mas, sabe-se, não haverá extradição mesmo que a culpa seja comprovada.
Uma semana depois da empolgante chegada, eles já estiveram em campo novamente, em Joinville (SC)- jogo que recebeu farta promoção pela presença dos quatro: promovidos de estupradores a “meninos travessos”, de “travessos” a “heróis”, de “heróis” a atração de marketing. O circulo se completa, reforçando um dos mais antigos estereótipos da “tradição gaúcha”, na qual os homens são “machos” e as mulheres, se suas são “prendas”, se de outros são “chinas”.

(ler tbm em https://jornalistaslivres.org/cuca-o-tecnico-do-sao-paulo-foi-condenado-por-estupro-na-suica/?fbclid=IwAR2R4cprKk_xjSJ4zYmdQa-lZj7ZOyipo3yzx6ANL2o6O7XyhZROY_XD2zw)