A Portal to Freedom: Palestra de Alison Griffiths‏

09/10/2012 19:45

“Um portal para a liberdade: a emergência do cinema nas prisões do início do século XX” *

Alison Griffiths

O século dezenove criou oportunidades sem precedentes para o engajamento sensorial intensificado com uma série de novas visões, sons, cheiros e experiências táteis em cidades de toda Europa, Ásia e Estados Unidos. Os centros urbanos eram melting pots, onde um afluxo de pessoas das províncias e do interior contribuiu para a cacofonia visual e sonora de corpos estranhos e línguas igualmente estranhas. As cidades pulsavam à medida que as mudanças arquitetônicas, tecnológicas, sociais e culturais misturavam o velho com o novo, o familiar com o estrangeiro; além de incrementos na infraestrutura, como transporte em massa e utilidades públicas em geral, as cidades foram transformadas pela invenção da fotografia, do telégrafo, do telefone, do fonógrafo e do cinema. Essas tecnologias de mídia conduziram a novos modos de percepção, sensação e de interação somática com o mundo: foram parte de todo um léxico de recalibrações perceptivas que os cidadãos tiveram que fazer para funcionarem no mundo moderno; como a historiadora da mídia Lisa Gitelman argumenta em Always Already New, “a mídia turva/turvou o mapa,” afetando os negócios, a cultura,  as artes, as relações sociais e interpessoais. Consideradas como instrumentos científicos da sociedade, ou como geradoras de novos cronótipos para o comportamento humano, as novas mídias certamente tiveram importância e, com relação aos sentidos e a mídia na prisão, elas realmente tiveram uma grande influência.

Esse artigo usa como estudo de caso o entretenimento no século XIX e as exibições de filmes nas prisões no início do século XX para preencher um vazio no nosso entendimento sobre as exibições fora dos cinemas, numa instituição que, sendo parecida com a escola, na medida em que ambas contém plateias cativas, é única em diversos outros aspectos. Não apenas o caso do cinema na prisão exige uma reconsideração dos modelos historiográficos recebidos da transformação do primeiro cinema, de uma experiência de fachada até sua sanção, ideologicamente proscrita como um passatempo fácil e pseudointelectual, como a persistência da antiga tela e de práticas de entretenimento como a lanterna mágica, o vaudeville, concertos e leituras, assim como a situação bastante distinta de uma administração que emprega o novo meio a serviço de um regime permanente de vigilância e disciplina, exige que se repense a experiência social e sensorial do cinema em cenários alternativos como as prisões.

Meu objetivo é explorar a maneira como a nova mídia afetou o equilíbrio dos sentidos na prisão e, além disso, considerar a instituição como um fascinante teste de correção. Ao invés de observar a chegada do cinema na prisão como um obstáculo que foi vencido ou um momento de avalição qualitativa, meu argumento é que essa emergência só foi possível por difíceis batalhas ganhas anteriormente, esforços por reformas tais como o estabelecimento de bibliotecas prisionais, educação e treino vocacional para os internos, prática de esportes e entretenimento. De forma abstrata, poderíamos argumentar que os prisioneiros estavam sensorialmente preparados para o cinema mesmo antes de esse fazer sua aparição (relativamente) tardia nas penitenciárias dos Estados Unidos entre 1909-1914. E, enquanto o cinema trouxe o mundo de fora para dentro, ele também levou a prisão pra fora, como resultado do uso daquele espaço para filmagens com cada vez mais regularidade. Meu artigo é organizado, em linhas gerais, em duas partes: começo com uma discussão sobre o impacto sensorial da mídia na prisão antes de rapidamente tratar da adoção da mídia e dos padrões de seu consumo na prisão.

A prisão é uma intensa experiência corporal, como sugerido por essas duas imagens de internos: a primeira, dos prisioneiros de Pentonville, mostra a ridícula (e fracassada) medida das autoridades para esconder a identidade individual como parte de um sistema separado (homens deveriam baixar seus capuzes em locais públicos), e que teve origem na Estern State Penitentiary, na Filadélfia. Já as mulheres usavam um véu de um material bem fino, como visto na figura. A segunda imagem, feita em torno de 1860, mostra o interior de uma cela da Surrey House of Correction. Essa imagem não tem nada, e, paradoxalmente, tem tudo a ver com a ideia da entrada da mídia na prisão. Virado de costas para a câmera com as mãos segurando a alça de um instrumento conhecido por crank – uma máquina de trabalho pesado usada pelos detentos das solitárias – o olhar do prisioneiro está fixado num retângulo de luz à frente que lança uma radiante sombra na parede mais distante. Para não especialistas, o homem poderia ser confundido com um dos irmãos Lumière, um projetista cinematográfico, rodando as imagens enquanto cuidadosamente mantém a mesma velocidade, seja para gravar a imagem em movimento ou mostrá-la de para o público. Entretanto, dada a configuração, a data da fotografia, e o design do dispositivo, ele obviamente não está operando uma câmera. O crank, como descoberto posteriormente, era usado na prisão para conter os efeitos deletérios causados pela ociosidade. Naquela época, os diretores prisionais usavam todo tipo de engenhocas para “empregar” suas populações masculinas num trabalho (im)-produtivo, mantendo seus corpos como se eles fossem as infortunadas peças de uma maquinaria desmotivante, com suas calorias constantemente controladas para que os detentos tivessem somente o necessário, e nada além disso, para completar aquele trabalho sem sentido.

Mas o papel do cinema nas prisões é evocado ainda de outras maneiras nessa imagem: como o projetor, o crank desempenhava uma função discursiva similar, exercendo controle sobre os corpos, literalmente como uma máquina, mas também ideologicamente, dada a complexa articulação do cinema com outros regimes disciplinares.

O esforço despendido no trabalho sujo com o crank (ou alguma outra versão pervertida disso) X a recreação; um livro está aberto sobre a mesa, em frente ao homem sugerindo que as reformas devem envolver tanto a mente quanto o corpo. Com a lista de regras da penitenciária bem exposta, uma privada, uma pia pequena, uma lamparina a gás, e possivelmente uma rede enrolada no chão, a cela contém virtualmente todas as necessidades vitais (salvo comida e companhia) que um homem pode esperar receber enquanto estiver preso.

Os sentidos são empregados na prisão da mesma maneira que no mundo livre, mas como um espaço disciplinar, regido por ideais paternalistas e estruturas de vigilância, a prisão atua nos sentidos humanos de maneiras impiedosas. A vida na prisão foi experienciada como uma série de oposições que, ou embotavam os sentidos ou os tornavam hipersensíveis a mudanças sutis: a escura, apertada e claustrofóbica cela individual em contraposição à capela e ao pátio de exercícios; o tormento dos finais de semana trancafiados na cela, quando o tempo parecia permanecer parado em oposiçao à sensação atenuada de passagem de tempo quando a pessoa amada vem visitar; a oficina suja e barulhenta onde as mãos grosseiras tecem cestas contrastante com o ar fresco e a luminosidade do pátio de exercícios. A prisão causou danos aos sentidos encarcerando o corpo em um mundo cinza e inóspito onde atividade, dignidade e vivacidade estavam em falta. As mídias, na forma de livros, revistas, fotografias, slides de lanterna mágica, gramofones e imagens em movimento (e mais tarde o rádio e a televisão) quebraram a monotonia e foram integradas às prisões onde proliferaram rapidamente. (A Sing Sing publicou a revista do prisioneiro Star of Hope de 1899 a1921 e a maioria das grandes penitenciárias tinha suas próprias revistas). Prisões como a Aubrun Prision, localizada no norte do estado de Nova Iorque mantinham detalhados registros sobre os gêneros lidos pelos internos – os presidiários liam menos no verão e preferiam ficção dez vezes mais aos outros gêneros – fenômeno percebido tanto nas suas escolhas de livros quanto de revistas.

Contudo, livros, jornais e revistas não eram os únicos objetos emprestados em bibliotecas prisionais; a Sherborn Reformatory Prision for Women, no sul de Framingham, Massachusetts operava uma biblioteca rotativa de imagens, “impressões agradáveis e material com notável valor educacional”, que deveriam ficar uma semana em cada cela até serem passadas para a próxima e serem substituídas por novas imagens. A ideia de uma cela como um ambiente de constante mudança visual, personalizada pela própria prisioneira, faz lembrar os cartazes de publicidade, ou galerias de exposições temporárias em museus em que as imagens permanecem por pouco tempo; o que é uma contraposição ao espaço doméstico, no qual as obras de arte normalmente permanecem penduradas por muito tempo (às vezes até a pessoa morrer). A ideia de se terem novas imagens para olhar toda semana é sugestiva e repleta de significado metafórico: isso permite a ação da detenta (essa figura no lugar daquela), permitindo que ela ressignifique o espaço ao decidir onde colocá-las, justapondo-as e apreciando-as antes que partam para um novo lar temporário. Se propaganda serve com um referencial lógico, aqui há, no entanto, alguma coisa singularmente diferente acerca da racionalidade por trás da biblioteca de imagens. Dar às mulheres imagens “agradáveis” para olhar fazia parte de um esforço maior de reforma; essas imagens de cenas pastorais, religiosas, ou domésticas eram mementos visuais, pensados para acelerar a transformação das mulheres e sua conformação com as normas sociais e de gênero da classe média e, embora compartilhassem alguns objetivos retóricos da publicidade e estivessem de fato vendendo estilos de vida e valores normativos, elas eram também proto-cinemáticas e correspondiam, em alguns aspectos, com as mudanças semanais na programação de um cinema.
Num ambiente onde a vigilância constante era norma, o cinema pode ter fornecido uma capa temporária de anonimato ao prisioneiro masculino, uma oportunidade para desaparecer por um curto período de tempo na escuridão da capela. Foi exatamente desta maneira que um jornalista, convidado para uma projeção de Natal no presídio do estado de Connecticut, descreveu o momento: os olhos do detento “concentrados na tela enquanto a escuridão caía sobre o público… invisível pelas próximas duas horas”.

Essa ilustração de 1921 da Photoplay, desenhada por Norman Aubrey, mostra a parte detrás de cerca de duas dúzias de cabeças fazendo o papel de espectadores virtuais de baseball sentados na arquibancada de um jogo. Para que o leitor não esquecesse que os homens assistindo ao filme de baseball estavam presos, Aubrey incluiu um portão com grades na parte esquerda da tela, que, como a própria tela, tem uma luz que se irradia dele. A luz está conotativamente ligada à liberdade e à fuga tanto na imagem projetada na tela quanto na luz do dia saindo através das grades da janela na esquerda; ambas são portais para o mundo lá fora. O público interno, duas dúzias de homens brancos, com os ombros curvados, bochechas afundadas e com as regulamentares listras de presídios, encaram atenta e até apaixonadamente a tela como se tivessem sido drogados ou estivessem mesmerizados pela experiência. As listras da prisão convêm perfeitamente com a uniformidade do olhar e com seriedade (e drama) do jogo de beisebol, enquanto o batedor aguarda o próximo arremesso. A legenda, “Em liberdade condicional”, não deixa nenhuma dúvida quanto às conotações virtuais de fuga das imagens em movimento, muito embora esta seja mais uma libertação sancionada do que um ato subversivo. Que os modelos de espectador na prisão estejam discursivamente ligados à liberdade condicional é interessante, especialmente na medida em  que a ideia da sentença indeterminada pode ser atribuída a um ato da legislatura de Michigan de 1869, muito anterior ao surgimento do cinema. Cinema na prisão é, portanto, uma metáfora para a liberdade condicional, uma visão do que a liberdade condicional pode parecer quando estiverem lá fora.

O cinema encontrava tudo aquilo de que precisava na prisão: o diretor da prisão ou superintendente do hospício atuava como um censor-programador, o secretário de entretenimento da Mutual Welfare League (ou um órgão similar da prisão) era responsável pela programação, e os internos operavam o projetor e faziam o acompanhamento ao piano. Não havia hall de entrada, cartazes de filmes, anunciadores ou vendedores ambulantes e nunca houve necessidade de uma bilheteria, e se esta descrição de uma exibição de 1909 na capela do Asilo Longview, em Ohio pode ser considerada típica, “não houve risadas, nem empurrões, o porteiro aristocrático brilhou por sua ausência, e todos tomaram seus assentos sem perturbação.” Claro que os registros históricos demonstram que esse não foi sempre o caso e, embora o tempo me impeça de proceder a uma discussão detalhada da consanguinidade entre agentes penitenciários e porteiros do cinema, essas imagens estão discursivamente carregadas.

Os funcionários das penitenciárias preferiam filmes com inequívocas mensagens moralistas e heróis e vilões amplamente esboçados. Um relatório dos filmes exibidos pela segunda vez na Connecticut State Prison, em julho de 1916, garantiu aos leitores que “[os prisioneiros] torciam para o herói todo o tempo, em todos os filmes, e aplaudiam fortemente quando ele finalmente superava o vilão e ganhava a mão da bela donzela. ” O Dr. Guiseppe Spano, diretor-geral das prisões e reformatórios italianos, decidiu, após um período experimental de exibição de filmes na prisão romana Coeli Refina em 1922, estender a prática a outras prisões e reformatórios italianos, decisão apoiada por Enrico Ferri, o mais importante criminologista da Itália.

O cinema na prisão criou um novo tipo de espaço social, diferente de sua versão concomitante do lado de fora; e se, como Mirian Hansen argumenta, citando Alexander Kluge, o cinema constitui não apenas uma nova esfera pública, mas uma esfera composta pela “interação entre o filme na tela e o ‘filme na cabeça do espectador,’” então é interessante pensar: que tipo de filme se desenrolava na cabeça de espectadores separados da esfera pública real? Como deve ter sido o impacto de assistir a um pacote de turismo virtual e escapismo quando literalmente não se poderia fugir? Essa questão foi a força motriz por trás do fascínio da imprensa pelas imagens em movimento nas prisões. Pode-se argumentar, então, que o debate sobre cinema e reforma moral está virado de cabeça pra baixo no caso das penitenciarias já que os criminosos são certamente o grupo que, mais do que qualquer outro, deveria ter sido protegido das influências imoralizantes dos filmes. Apesar de os filmes com uma forte mensagem reformista serem geralmente preferidos pelas autoridades da prisão a filmes com uma orientação moral mais frágil,os filmes comerciais projetados nos cinemas locais tinham tanta chance de serem exibidos aos presos nas capelas quanto os filmes com assuntos educativos, complicando ainda mais qualquer explicação simplista que atribuísse ao cinema uma função puramente reformista.
A prisão, portanto, serve como um estudo de caso fascinante para se pensar o impacto da mídia nos sentidos, pela simples razão de que, da mesma maneira que uma outra instituição baluarte do século XIX, o Museu de História Natural,  adotou as novas mídias lentamente, pé ante pé, e não de maneira brusca. As penitenciarias ponderaram cuidadosamente os prós e contras de integrar a mídia; a exibição de filmes para os encarcerados trouxe uma série de riscos inerentes: tumultos, incêndios e fugas não eram apenas temidos, mas aconteciam sob o olhar (ou não) dos guardas que também se colocavam em risco quando centenas de homens eram reunidos –  ultrapassavam em muito o número de guardas – para assistir filmes. A reputação de repetitividade e homogeneidade da mídia serve como uma metáfora adequada para a vida atrás das grades já que é precisamente isto que os presos faziam dia após dia. Todo cuidado foi tomado na programação para não comprometer os valores essenciais e as diretrizes da missão, mesmo assim os carcereiros estavam na linha de fogo de alguns blocos seja por “mimarem” demais suas alas, seja por falharem em reformá-las, um caso de dane-se se você fizer e dane-se se não.

Para concluir, dizer que a experiência do cinema na prisão foi complicada é uma distorção grosseira; se configurada sistematicamente, é evidente que há partes da experiência que tendem para o lado mais amplo do cinema educativo exibido fora das salas de cinema, enquanto outros aspectos recaem sobre modelos convencionais de espectadores. Quando Edgar Allan Poe escreveu, no início de seu conto de tortura na prisão “O poço e o pêndulo”, que se sentiu como se seus sentidos o deixassem, ele tocou numa conceituação comum da metamorfose corporal do interno; e ainda que a privação sensorial paradoxalmente tenha conduzido a uma intensificação dos sentidos quando estímulos como leituras ilustradas, concertos, slides e imagens em movimento eram mostrados, o cinema se tornou muito mais do que entretenimento barato; ele desempenha um serviço humanitário, pegando aquele retângulo de luz da cela da Surrey House of Corrections e o animando com imagens de esperança, de um futuro, um outro lugar.

 

* “A Portal to Freedom: Cinema’s Emergence in the Early Twentieth Century Prison”

Palestra proferida na Universidade Federal de Santa Catarina, 11/10/2012.

Tradução: Marina Moros